https://drive.google.com/drive/folders/1gjyeKdW_ljuR2gnqa7z_e3IBlnkgVgID
J Já foi possível ser otimista com relação à tecnologia. Da posição ingênua que viu o desenvolvimento de usinas e armas nucleares e não enxergou na inovação da técnica nada além de “novas ferramentas”, passamos por uma geração que comprou a narrativa de que a internet criaria um mundo novo, onde pessoas poderiam conectar-se entre si e compartilhar conhecimento (o que de fato ocorreu) de maneira direta e livre da influência do Estado e de grandes corporações (o que não ocorreu, mas por um momento muito breve pareceu plausível), para hoje habitarmos enfim Zeitgeist em que CEOs publicamente promovem frenesis semirreligiosos que vão da fuga para Marte à chegada da Singularidade, pretendendo converter modelos de linguagem em literais messias, oráculos alternadamente divinos, alienígenas ou supra-humanos encarnados em equações derivadas e GPUs. Com microplásticos nadando ao lado de nossas mitocôndrias e nossa capacidade cognitiva de atenção negociada como commodity, parece evidente que atingimos algum tipo de pós-Humanidade – mas talvez não aquele sonhado por Haraway.

Frente a uma tendência histórica que parece levar ao inexorável apagamento da subjetividade e de qualquer barreira entre o “natural” e “artificial” em nossos corpos, paisagens e pensamentos, como pode o artista contemporâneo reagir? Uma resposta, bem intencionada mas natimorta, é a rejeição completa e quase ludista da presença da máquina na criação artística, o fazer artístico aqui romantizado como território da introspecção genial, intimidade por excelência purificada da contaminação pelo não-Humano. Seguindo uma linha difusa de diferentes pesquisas que inclui Warhol e sua serigrafia, a música estocástica de Iannis Xenakis, ou ainda o ready-made, mas que se poderia dizer inicia com o azul de cádmio, primeiro pigmento sintético, ou ainda com o uso da camera obscura, uma resposta alternativa é abraçar a artificialidade da técnica e as possibilidades criativas que introduz, negando qualquer diferença essencial entre a cerâmica e o polietileno de alta densidade, ou entre o pincel e um modelo de difusão latente de geração de imagens.

Esta última é a posição de Gpeto em sua pesquisa, que há anos mescla em seu processo criativo a utilização de inteligência artificial, treinada a partir de suas próprias pinturas, para a geração de imagens que viram então referências para novas pinturas, em ciclo de retroalimentação pictórica que admite uma continuidade (ou parceria?) entre máquina e artista. Em ORGANISMO SINTÉTICO, primeira exposição centrada em sua pesquisa escultórica, o artista apresenta obras em que tanto forma e tema reforçam esta mesma tese: agressivos e sedutores, corpos de espuma expansiva de poliuretano mimetizam como sublimes quimeras tentáculos munidos de chifres, serpentes em posição de ataque ou ainda vulcões próximos à erupção. O acabamento resinado brilhante, que ora proporciona às esculturas aspecto mucoso, pulsante e visceral, ora traz nas pinturas aparência vitrificada e asséptica similar ao de telas de televisões ou celulares, evocando repulsa e desejo simultâneos. Na Natureza sintetizada por Gpeto, pinturas e esculturas sangram como fígados e corações, e animais sem alma perambulam livremente pelos campos como pássaros, gazelas ou chimpanzés: o que nos resta é contemplar nossa própria Criação.


Alice Granada