Frequentemente escolhemos palavras como fragmentação e descentramento para descrever certa condição contemporânea, relacionando-as diretamente com a presença marcada de novas tecnologias. Vale lembrar que essas características talvez sejam parte de um processo mais longo, mudanças enfrentadas pela própria história da percepção ao longo do século XIX.

Em sua importante genealogia sobre as técnicas da visão, Jonathan Crary nos mostra que no conhecido modelo óptico da câmera escura (que prefigura a invenção da fotografia) qualquer interferência do corpo humano era deixada de lado frente à produção da imagem, que se dava por uma relação meramente física. O sujeito observador era introspectivo em sua racionalidade, protegido dos “enganos do sensível”, e a imagem restava como mero efeito do espetáculo luminoso. É Goethe quem sugere um direcionamento do olhar para a escuridão, onde seria possível conhecer uma imagem criada pela percepção da ausência de luz, subvertendo o dispositivo anterior. Esta era formada pelo próprio olho que vê e seu corpo orgânico, como se a fisiologia pudesse então perceber a imagem do mundo.

Gpeto elenca a paisagem digital como um termo importante para descrever sua produção. Talvez seja impossível pensar as imagens do mundo hoje sem a interferência do repertório visual da tela e das interfaces digitais no cotidiano. A produção do artista se apropria, em determinados momentos, do recurso de criação de imagens por meio das inteligências artificiais. A geração dessas figuras o leva a desenvolver pinturas que lidam com presenças específicas, seres ou coisas que não existem na realidade palpável, mas que podem ser imaginados com o auxílio dos recursos digitais. No entanto, não se filia aos segmentos da dita “arte digital”, na medida em que os suportes físicos se apresentam como centralidades em sua prática. Cavalo de Troia apresenta uma disposição de pinturas e esculturas, categorias tradicionais da história da arte, embora Gpeto traga modos de se relacionar com essas linguagens que indicam outras formas de relação com a imagem em si, talvez porque haja importantes mediações envolvidas.

Donna Haraway apresenta, na década de 80, a figura do ciborgue enquanto um mito político. Apesar das décadas que separam a escrita do seu manifesto com os tempos de hoje, a atualidade ainda parece reivindicar o ciborgue enquanto metáfora ou expressão máxima de algumas tensões. Aqui a figura talvez nos ajude a pensar a dimensão digital da paisagem que Gpeto está lidando, ou mesmo entender algumas questões ligadas a este corpo que é fragmentado ao longo da história, junto às suas capacidades perceptivas e cognitivas. O momento pós câmera escura traz o corpo vivo, passível de ser afetado, enquanto um ativo produtor de imagens. Em meio à saturada hiper conexão que vivemos, junto dos incessantes estímulos que nos atravessam, como essas condições afetam nossas relações com as imagens e sua produção?

A autora falava de um tempo mítico marcado por uma simbiose entre humanos e máquinas. A partir do ciborgue só podemos entender humanidade enquanto hibridismo e quimera. Nos trabalhos desta exposição Gpeto está lidando com imagens a partir de hibridizações e transformações (inspirado, ao mesmo tempo, pela paisagem cotidiana e a digital). Resta a sensação de que para pensar o corpo hoje, partir dos diferentes atravessamentos que ele pode ter com a técnica é algo incontornável, bem como tomar a organicidade em sua pureza como algo permanentemente dissolvido. Talvez seja por isso que as esculturas presentes em Cavalo de Troia, possibilitadas pelo efeito da manipulação da espuma expansiva, sejam ao mesmo tempo pedaço de gente e resto de coisa, na mesma medida em que disputam alguma independência. O brilho da resina faz a imagem reluzir e delirar, enquanto algo permanece em opacidade.

O ciborgue é a abolição de fronteiras outrora organizadoras: homem/animal, animal/máquina, natureza/cultura, cultura/tecnologia. Ele atua a favor de um profundo hibridismo, enquanto Gpeto está hibridizando processos analógicos e digitais. Talvez seja importante elencar “acoplamento” como uma palavra-chave para guiar alguma observação desta exposição. Temos com a tecnologia uma relação muitas vezes marcada por uma aderência quase imperceptível. Nossas experiencias são, de um modo geral, ampliadas com os aparatos disponíveis. A máquina é uma expansão de possibilidade, uma prótese que se liga de modo fundamental à vida humana. As esculturas presentes podem ser estruturas autônomas, mas também podemos entendê-las como extensões que se acoplam ao corpo. Pedaços de um ciborgue destruído, portadores de alguma fantasmagoria salvadora. Ao mesmo tempo as esculturas comportam algo de visceral, remetendo à materialidade da carne, como a região material do nosso corpo que é a todo tempo atravessada por essa demanda acelerada, que penetra o físico e invade o mental.

É possível dizer que o descentramento avassalador experimentado hoje é atravessado por uma experiência singular em relação ao tempo. Ninguém mais dorme, sabemos. O tempo que nos resta é um presente reiterado. O experimentamos efetivamente quando estamos acordados, operando em função de uma espécie de economia servil. No presente dilatado o horizonte parece dissolvido, o que afeta nossa relação com a memória e com o esquecimento. A capacidade de hesitar é prejudicada, bem como a possibilidade da deriva e do devaneio. A hiper estimulação excita o presente e nos faz desejar o curto-prazo e os automatismos. E isso não se deve somente às novas tecnologias, mas a algo mais complexo. Em jogo estão práticas discursivas, fluxos do capital, formando dispositivos que estão inscritos historicamente. Tematizar as tecnologias isoladas seria esquecer a dimensão do tempo histórico vivido e o que nos faz chegar até aqui.

O tempo que navegamos é uma linha homogênea. Em tamanha batalha travada pelo corpo hibridizado, o trabalho de Gpeto talvez nos transmita a necessidade de alguma pausa. Se não um momento de reflexão, um questionamento atônito. A parada aqui não é de alguma forma idílica, e nem por isso menos crítica. Há ritmos e intensidades nessas imagens, de alguma forma elas se valem de uma modulação contemporânea, mas não embarcam em absoluto em uma aceleração acrítica, de modo que possamos, ao observá-las, urdir no tecido do cotidiano alguma coisa. Enquanto o repertório imagético da tela parece demasiado real, as imagens trazidas para esta exposição partem dessa conformação, mas produzem a partir dela algumas distorções que provocam o pensamento.

A ideia de aproximar o funcionamento do cérebro do processamento de uma máquina parece adequada à contemporaneidade, mas e se pensássemos, junto a Bergson, o cérebro como um operador de esquecimento, na medida em que se confunde com o espírito e é capaz de reservar uma memória mais virtualizada do que arquivista? Sim, as máquinas estão cada mais vez automatizadas, restando ao cérebro humano o desafio de não esquecer de praticar o lapso, uma vez que as estruturas vão se confundindo. Buscar o esquecimento e as distorções pode ser um modo de desprender-se da obsessiva procura pela fixação e o armazenamento.

O tempo é, além de tudo, irreversível. As coisas vão passar, os elementos desvanecem. É difícil não estar ressentido. Para praticar o lapso é preciso algum grau de devaneio. Ao visitar esta exposição e percebê-la faz-se necessária uma entrada num determinado fluxo de tempo que incide na imagem. O controle social tem como um dos efeitos a colonização temporal, que reifica a existência e a experiência em um contínuo, impondo certas relações unidirecionais com a imagem. O corpo ativo, efeito de práticas discursivas e seus dispositivos, outrora capaz de traduzir os feixes de luz em imagem, hoje se depara com a paisagem dita digital, uma abstração ainda maior e mais luminosa. Os trabalhos de Gpeto não só elaboram, de um modo direto ou indireto, as questões ligadas ao conjunto visual da tela, como possibilitam alguma busca por outros modos de existência. Se partirmos do pressuposto de que não há propriamente uma oposição evidente entre tecnologia e cultura, somos todos ciborgues. O Cavalo de Troia é uma miragem real, uma construção que não se sabe verdadeira, mas relevante no imaginário. A máquina de guerra é feita de madeira, fazendo alusão ao animal cavalo. Trojan Horse, não à toa, é nome de um vírus de computador muito recorrente, um famoso malware que causa distorções e afetações nos sistemas. Cabe a nós imaginar possíveis variações de composições e acoplamentos mais interessantes e imaginativos, de modo a não criar uma aceitação passiva de tamanha aceleração que conforma a modernidade no ocidente.




Daniela Avellar